quinta-feira, 31 de julho de 2014

Motivo


*”Eu canto porque o instante existe
e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste:
sou poeta.

Irmão das coisas fugidias,
não sinto gozo nem tormento.
Atravesso noites e dias
no vento.

Se desmorono ou se edifico,
se permaneço ou me desfaço,
— não sei, não sei. Não sei se fico
ou passo.

Sei que canto. E a canção é tudo.
Tem sangue eterno a asa ritmada.
E um dia sei que estarei mudo:
— mais nada.”

Poema da escritora *Cecília Meireles, de sua obra-prima Viagem (1939).

Para ser feliz


*"Para ser feliz há dois valores essenciais que são absolutamente indispensáveis (...) um é segurança e o outro é liberdade, você não consegue ser feliz e ter uma vida digna na ausência de um deles. Segurança sem liberdade é escravidão. Liberdade sem segurança é um completo caos. Você precisa dos dois. (...) Cada vez que você tem mais segurança você entrega um pouco da sua liberdade. Cada vez que você tem mais liberdade você entrega parte da segurança. Então, você ganha algo e você perde algo".

*Zygmunt Bauman 

quarta-feira, 30 de julho de 2014

Canção excêntrica


*“Ando à procura de espaço
para o desenho da vida.
Em números me embaraço
e perco sempre a medida.
Se penso encontrar saída,
em vez de abrir um compasso,
projeto-me num abraço
e gero despedida.

Se volto sobre o meu passo,
é já distância perdida.

Meu coração, coisa de aço,
começa a achar um cansaço
esta procura de espaço
para o desenho da vida.
Já por exausta e descrida
não me animo a um breve traço:
saudosa do que não faço,
do que faço, arrependida.”

*Cecília Meireles, (1901-1964)

domingo, 27 de julho de 2014

Mistério

*“Gosto de ti, ó chuva, nos beirados,
Dizendo coisas que ninguém entende!
Da tua cantilena se desprende
Um sonho de magia e de pecados.

Dos teus pálidos dedos delicados
Uma alada canção palpita e ascende,
Frases que a nossa boca não aprende
Murmúrios por caminhos desolados.

Pelo meu rosto branco, sempre frio,
Fazes passar o lúgubre arrepio
Das sensações estranhas, dolorosas...

Talvez um dia entenda o teu mistério...
Quando, inerte, na paz do cemitério,
O meu corpo matar a fome às rosas!”

*Florbela Espanca, in "Charneca em Flor"

quinta-feira, 24 de julho de 2014

Morrer


*"Não tenho medo da morte, embora tenha medo do morrer. O morrer pode ser doloroso e humilhante, mas à morte, eis uma pergunta. Voltarei para o lugar onde estive sempre, antes de nascer, antes do Big Bang? Durante esses bilhões de anos, não sofri e não fiquei aflito para que o tempo passasse. Voltarei para lá até nascer de novo."

Pensamento de *Rubem Alves ((1933 – 2014), psicanalista, educador, teólogo e escritor brasileiro, autor de livros e artigos abordando temas religiosos, educacionais e existenciais, além de vários livros infantis.

quarta-feira, 23 de julho de 2014

Atenção


*"O que as pessoas mais desejam é alguém que as escute de maneira calma e tranqüila. Em silêncio. Sem dar conselhos. Sem que digam: "Se eu fosse você". A gente ama não é a pessoa que fala bonito. É a pessoa que escuta bonito. A fala só é bonita quando ela nasce de uma longa e silenciosa escuta. É na escuta que o amor começa. E é na não-escuta que ele termina. Não aprendi isso nos livros. Aprendi prestando atenção."

Do escritor e educador *Rubens Alves (1933 – 2014)

Bem no fundo


No fundo, no fundo,
bem lá no fundo,
a gente gostaria
de ver nossos problemas
resolvidos por decreto

a partir desta data,
aquela mágoa sem remédio
é considerada nula
e sobre ela — silêncio perpétuo

extinto por lei todo o remorso,
maldito seja quem olhar pra trás,
lá pra trás não há nada,
e nada mais

mas problemas não se resolvem,
problemas têm família grande,
e aos domingos
saem todos a passear
o problema, sua senhora
e outros pequenos probleminhas

Do escritor e poeta curitibano, Paulo Leminski (1944–1989).

Vem


Vem! Encha a casa com sua presença e ilumine-a com todos seus matizes. Ocupe o seu espaço e beneficie-se de todo o amor que lhe cabe.  Converse, converse muito. Seja lá, com vozes altas, baixas ou sussurrando no ouvido. Desarrume as coisas. Pare o tempo, acelere o ritmo. Solte suspiros de satisfação e alegrias. Assobie. Graceje. Ria, ria, ria! Compense minhas esperanças ingênuas. Se houver relâmpagos, chuvas ou trovoadas, encare a vida sempre como um verdadeiro milagre. Vem colorir este lado de cá. Vem, tome o seu lugar.

terça-feira, 22 de julho de 2014

Intimidade


*“No coração da mina mais secreta,
No interior do fruto mais distante,
Na vibração da nota mais discreta,
No búzio mais convolto e ressoante,

Na camada mais densa da pintura,
Na veia que no corpo mais nos sonde,
Na palavra que diga mais brandura,
Na raiz que mais desce, mais esconde,

No silêncio mais fundo desta pausa,
Em que a vida se fez perenidade,
Procuro a tua mão, decifro a causa
De querer e não crer, final, intimidade.” 


Poesia de *José Saramago, in “Os Poemas Impossíveis”, de 1966.

Há de haver


*“Há de haver uma cor por descobrir,
um juntar de palavras escondido.
Há de haver uma chave para abrir
a porta deste muro desmedido.

Há de haver uma ilha mais ao sul,
uma corda mais tensa e ressoante,
outro mar que nade noutro azul,
outra altura de voz que melhor cante.

Poesia tardia que não chegas
A dizer nem metade do que sabes:
Não calas, quanto podes, nem renegas
Este corpo de acaso em que não cabes.”

Poesia do escritor *José Saramago, in “Os Poemas Impossíveis”, de 1966.

segunda-feira, 21 de julho de 2014

Amizade


*“Ninguém gosta de ser metido a besta ou a moralista. Eu também não gosto. No entanto, já não era a mesma coisa, nem em meu coração, nem em meu espírito. Quando uma antiga amizade não se refaz por completo, é na cabeça que a gente sente mais. Mas de que servem estas palavras? A coisa toda era muito mais complicada do que eu pude imaginar e jamais conseguirei explicá-la direito.”

*Ernest Miller Hemingway (21/7/1899-2/7/1961), romancista norte-americano. Autor “Por Quem os Sinos Dobram” e “O Velho e o Mar”.

Bagagem

Por Lislair Leão Marques

"Arrumo a valise para a partida.
É bagagem de pouco peso
porque vai desprovida de vaidade.
Sonhos moldam-se aos espaços disponíveis;
o resto são afetos e saudades.
Dispenso cadeado:
sentimento não é coisa pra se roubar.
Tampouco colo etiquetas,
já que as curvas do meu caminho
nem eu mesma sei onde vão dar.
Uma flor no cabelo,
uma reza no peito,
a cruz companheira,
saio de alma lavada à procura de mim.
Guardo nos olhos as cenas que vivi
e parto em busca de uma tarde de rubi."

quarta-feira, 16 de julho de 2014

Escrava


*“A suposição de que a identidade de uma pessoa transcende, em grandeza e importância, tudo o que ela possa fazer ou produzir é um elemento indispensável da dignidade humana. (...) Só os vulgares consentirão em atribuir a sua dignidade ao que fizeram; em virtude dessa condescendência serão escravos e prisioneiros das suas próprias faculdades e descobrirão, caso lhes reste algo mais que mera vaidade estulta, que ser escravo e prisioneiro de si mesmo é tão ou mais amargo e humilhante que ser escravo de outrem.

*Annah Arendt

Sentida


*“Há uns que nos falam e não ouvimos;
há uns que nos tocam e não sentimos;
há aqueles que nos ferem e
nem cicatrizes deixam, mas...
há aqueles que simplesmente
vivem e nos marcam por toda vida.”

e

*“Toda dor pode ser suportada se sobre ela puder ser contada uma história.”

Pensamentos deixados pela escritora *Annah Arendt (14 de outubro de 1906 – 4 de dezembro de 1975), nascida como Johanna Arendt, ela foi uma filósofa política alemã de origem judaica, uma das mulheres mais influentes do século XX.

terça-feira, 15 de julho de 2014

Amigo


*Amigo é coisa para se guardar
Debaixo de sete chaves
Dentro do coração
(...)
Amigo é coisa para se guardar
No lado esquerdo do peito
Mesmo que o tempo e a distância digam "não"
Mesmo esquecendo a canção
O que importa é ouvir
A voz que vem do coração
Pois seja o que vier, venha o que vier
Qualquer dia, amigo, eu volto
A te encontrar
Qualquer dia, amigo, a gente vai se encontrar”

Letra da música “Canção da América”, autoria de *Milton Nascimento e Fernando Brant

segunda-feira, 14 de julho de 2014

Escrita


*"Qual é o propósito da escrita? Para mim, pessoalmente, é realmente para explicar o mistério da vida, e o mistério da vida inclui, claro, os pessoais, os políticos, as forças que nos tornam aquilo que somos enquanto existe outra força dentro de nós a lutar para que sejamos algo diferente."

Pensamento de *Nadine Gordimer, escritora sul-africana, Nobel em 1991. Nasceu no dia 20 de novembro de 1923, e faleceu hoje. Autora de crônicas sobre a deterioração social que afetou a África do Sul durante o regime do apartheid.

domingo, 13 de julho de 2014

Perfeição


*"O que me tranquiliza é que tudo o que existe, existe com uma precisão absoluta. (...) Tudo o que existe é de uma grande exatidão. Pena é que a maior parte do que existe com essa exatidão nos é tecnicamente invisível. Apesar da verdade ser exata e clara em si própria, quando chega até nós se torna vaga pois é tecnicamente invisível. O bom é que a verdade chega a nós como um sentido secreto das coisas. Nós terminamos adivinhando, confusos, a perfeição."

Da espetacular escritora *Clarice Lispector

terça-feira, 8 de julho de 2014

Foi-se a Copa?


“Foi-se a Copa? Não faz mal.
Adeus chutes e sistemas.
A gente pode, afinal,
cuidar de nossos problemas.

Faltou inflação de pontos?
Perdura a inflação de fato.
Deixaremos de ser tontos
se chutarmos no alvo exato.

O povo, noutro torneio,
havendo tenacidade,
ganhará, rijo, e de cheio,
A Copa da Liberdade.”

Por *Carlos Drummond de Andrade, mineiro de Itabira do Mato Dentro. Viveu no Rio de Janeiro onde foi funcionário público. Foi um dos maiores poetas brasileiros. Autor de uma vasta obra, que inclui poesias, contos e crônicas. 

Vivo


Com os pés no chão, sou uma pessoa que caminha com alma. Meu rumo é uma meta. Sinto frio e ouço o vento. Espero o que não chega. Encaro as surpresas. Posso parecer morta por fora, mas dentro estou viva. Não vivo por viver, dou cores ao meu mundo. Minha felicidade é o meu querer. Sempre recebo em troca o que eu dou. Consigo, de tempo ao tempo, o que quero. Venço com luta. Controlo meu medo. Minha coragem é guia e vivo o presente como um presente.

domingo, 6 de julho de 2014

Glória divina


*“Nós sabemos que todas as coisas concorrem para o bem daqueles que amam a Deus, dos que são eleitos segundo os seus desígnios. Os que de antemão conheceu, também os predestinou a serem conformes à imagem do seu Filho (…). E aos que predestinou, a esses também chamou. E aos que chamou, também justificou. E aos que justificou, a esses também glorificou. O que diremos, pois, a essas coisas? Se Deus é por nós, quem será contra nós?”

*Jan Huss, reformador checo, em 1415 foi executado na fogueira.

O apanhador de desperdício


“*Tenho em mim um atraso de nascença.
Eu fui aparelhado
para gostar de passarinhos.
Tenho abundância de ser feliz por isso.
Meu quintal é maior do que o mundo.
Sou um apanhador de desperdícios:
Amo os restos
como as boas moscas.
Queria que a minha voz tivesse um formato de canto.
Porque eu não sou da informática:
eu sou da invencionática.
Só uso a palavra para compor meus silêncios.”

Parte do poema “O apanhador de desperdício” que celebra o silêncio versus a palavra, do poeta *Manoel de Barros.

O lobo e o cordeiro

  
“*Artigo V
   
Fica decretado que os homens 
estão livres do jugo da mentira.
Nunca mais será preciso usar
a couraça do silêncio
nem a armadura de palavras. 
O homem se sentará à mesa 
com seu olhar limpo 
porque a verdade passará a ser servida 
antes da sobremesa.
  
Artigo VI 

Fica estabelecida, durante dez séculos,
a prática sonhada pelo profeta Isaías,
e o lobo e o cordeiro pastarão juntos 
e a comida de ambos terá o mesmo gosto de aurora.”

Por *Thiago de Mello, 1964 em Santiago do Chile.

Menino


*“Artigo IV   

Fica decretado que o homem
não precisará nunca mais
duvidar do homem.
Que o homem confiará no homem
como a palmeira confia no vento,
como o vento confia no ar,
como o ar confia no campo azul do céu. 

        Parágrafo único:  

        O homem, confiará no homem
        como um menino confia em outro menino.”

Parte da poesia, em quatorze artigos, de “Os Estatutos do Homem” onde se reverencia os valores simples da natureza homem, do escritor amazonense *Thiago de Mello, publicado em 1964 em Santiago do Chile.

Os Estatutos do Homem


*“Fica decretado que agora vale a verdade.
agora vale a vida,
e de mãos dadas,
marcharemos todos pela vida verdadeira.

Fica decretado que todos os dias da semana,
inclusive as terças-feiras mais cinzentas,
têm direito a converter-se em manhãs de domingo. 

Fica decretado que, a partir deste instante,
haverá girassóis em todas as janelas,
que os girassóis terão direito
a abrir-se dentro da sombra;
e que as janelas devem permanecer, o dia inteiro, 
abertas para o verde onde cresce a esperança.”

Artigos: I,II e III, *Thiago de Mello

sábado, 5 de julho de 2014

Intensa


*“O meu mundo não é como o dos outros, quero mais, exijo demais, há em mim uma sede de infinito, uma angústia constante que eu nem mesmo compreendo, pois estou longe de ser uma pessimista; sou antes uma exaltada, como uma alma intensa, violenta, atormentada, uma alma que não se sente bem onde está, que tem saudades... sei lá de quê!”

Muitas vezes nos sentimos assim: exaltada, com a alma intensa, que tem saudades... Saudades, eu sei lá de quê! Assim como o texto da autora *Florbela Espanca.

Alma


*“Minh'alma, de sonhar-te, anda perdida. Meus olhos andam cegos de te ver! Não és sequer razão de meu viver, pois que tu és já toda a minha vida! Não vejo nada assim enlouquecida... Passo no mundo, meu Amor, a ler. No misterioso livro do teu ser. A mesma história tantas vezes lida! Tudo no mundo é frágil, tudo passa... Quando me dizem isto, toda a graça Duma boca divina fala em mim!”

De “Livro de Soror Saudade”, 1923. Na entrega, do amor e paixão, pela autora *Florbela Espanca.

Não queremos


*“ Sabemos muito claramente o que não queremos. Não queremos a violência, não queremos que a liberdade seja sofismada. Não queremos nem inquisições nem perseguições. Não queremos política da terra queimada. Não queremos política imposta. E no plano da cultura queremos acima de tudo que a política não seja anti-cultura. (...) Porque a demagogia é a arte de ensinar um povo a não pensar. (...) A cultura é cara. A incultura acaba sempre por sair mais cara. E a demagogia custa sempre caríssimo.”

*Sophia de Mello Breyner Andresen

Arte deve ser livre


*“Porque o ato de criação é em si um ato de liberdade. Mas não é só a liberdade individual do artista que importa. Sabemos que quando a Arte não é livre o povo também não é livre. Há sempre uma profunda e estrutural unidade na liberdade. Onde o artista começa a não ser livre o povo começa a ser colonizado e a justiça torna-se parcial, unidimensional e abstrata. (...) falta de liberdade cultural é um sintoma e significa sempre opressão para um povo inteiro.”

*Sophia de Mello Breyner Andresen

Gramática da vida


Eu desconheço o autor desse texto, duma singela sabedoria, eis tal, que tive aqui postar:

“Todo o sujeito é livre para conjugar o verbo que quiser, todo o verbo é livre para ser direto ou indireto. Nenhum predicado será prejudicado, nem tão pouco a frase, nem a crase, nem a vírgula e ponto final! Afinal, a má gramática da vida nos põe entre pausas, entre vírgulas, e estar entre vírgulas pode ser aposto, e eu aposto o oposto: que vou cativar a todos sendo apenas um sujeito simples.”

sexta-feira, 4 de julho de 2014

Amor e seu tempo


*“Amor é privilégio de maduros
estendidos na mais estreita cama,
que se torna a mais larga e mais relvosa,
roçando, em cada poro, o céu do corpo.

É isto, amor: o ganho não previsto,
o prêmio subterrâneo e coruscante,
leitura de relâmpago cifrado,
que, decifrado, nada mais existe

valendo a pena e o preço do terrestre,
salvo o minuto de ouro no relógio
minúsculo, vibrando no crepúsculo.

Amor é o que se aprende no limite,
depois de se arquivar toda a ciência
herdada, ouvida. Amor começa tarde.”

*Drummond

Inconfesso Desejo


*“Queria ter coragem
Para falar deste segredo
Queria poder declarar ao mundo
Este amor
Não me falta vontade
Não me falta desejo
Você é minha vontade
Meu maior desejo
Queria poder gritar
Esta loucura saudável
Que é estar em teus braços
Perdido pelos teus beijos
Sentindo-me louco de desejo
Queria recitar versos
Cantar aos quatros ventos
As palavras que brotam
Você é a inspiração
Minha motivação
Queria falar dos sonhos
Dizer os meus secretos desejos
Que é largar tudo
Para viver com você
Este inconfesso desejo”

*Carlos Drummond